Associar universo trans e Cristianismo é a receita de uma bomba prestes a detonar. Basta lembrar da repercussão causada pela imagem da trans Viviany Beleboni como Jesus na cruz durante a Parada Gay de 2015, ou da peça de teatro que retrata Jesus voltando à Terra como uma travesti, que gerou protestos por onde passou em 2017.
Mas há um grupo de pessoas que vive essas duas ideias diariamente e em harmonia. O G1
conheceu a história de três pessoas que cresceram na igreja, fizeram a
transição de gênero e encontraram novas igrejas onde afirmam que se
sentem aceitas. Isso tudo depois de passar boa parte da vida acreditando
que havia algo errado com elas.
Essas
novas igrejas pregam o que chamam de "Evangelho Inclusivo", vertente do
Cristianismo que defende a aceitação e a inclusão da comunidade LGBT.
O G1
também conversou sobre o assunto com um padre, um pastor e um
psicólogo, e entrevistou a diretora e a atriz trans de "O Evangelho
Segundo Jesus, Rainha do Céu" para falar sobre a mensagem da peça e a
resistência sofrida por ela.
Família trans na igreja
Alexya
Salvador tem 38 anos, é professora da rede pública de ensino de São
Paulo, casada, mãe de duas crianças – um menino e uma menina. Também é
pastora auxiliar da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM) de São
Paulo. É uma mulher trans, e sua filha é uma menina trans.
Vê-la
de joelhos com a família diante de um pastor recebendo oração ao fim de
um culto pode causar desconforto ou até ira de evangélicos e católicos
tradicionais, que não reconhecem a formação de uma família com essa
configuração.
Mas
foi exatamente em um lar católico tradicional que Alexya cresceu e
construiu a base de sua fé, em área rural de Mairiporã, na Grande São
Paulo. Só quando já estava no seminário estudando para ser padre que se
deparou pela primeira vez com o termo "travesti".
"Eu cresci ouvindo que pessoas LGBT estavam condenadas ao fogo eterno, por não atenderem àquilo que a Bíblia até então diz. E eu cresci nesse conflito de fé que me levou por três vezes a tentar o suicídio. Para mim, era melhor parar por ali mesmo do que enfrentar, de repente, um dia, aquele Deus tão tenebroso que a igreja me apresentou a vida inteira", lembra.
Foi só depois de se afastar da igreja, conhecer e se apaixonar por um homem e decidir se casar, que Alexya chegou a uma igreja inclusiva, buscando na internet. "Quando eu encontro a igreja e venho conhecer essa igreja, eu chego e encontro travestis, encontro drag queens, encontro gays, lésbicas, encontro famílias. E eu vou me reconhecer dentro desse cenário", afirma.
Foi
já nesse contexto que ela tomou coragem para fazer sua transição para o
sexo feminino, contando com o amparo do marido e da igreja. "A ICM fez
com que eu me percebesse como pessoa humana, quem eu era de fato no
mundo. E que era possível, sim, e era natural, acima de tudo, conciliar a
minha identidade de gênero, a minha sexualidade, com a fé, com o
Cristianismo."
A
adoção dos dois filhos, primeiro um menino com necessidades especiais e
depois uma menina trans, trouxe a responsabilidade de criá-los em meio a
adversidades.
"Desde
pequenos eles já aprendem os reais valores do Evangelho, que é a luta
pela construção de uma sociedade justa, igualitária; que o reino de Deus
é aqui, é agora; que a nossa preferência é o excluído, é o
marginalizado. (...) É isso que eu e o pai procuramos mostrar para eles
desde pequenos. Não é só ir à igreja, é fazer parte da construção da
civilização do amor", diz Alexya.
'Convertendo' a futura esposa
"Quando eu o conheci, ele disse: 'Olha, eu sou trans'. Foi muito complicado pra mim. Porque quando você é lésbica, você procura uma mulher lésbica, né. E eu nunca entendia esse mundo trans. Eu falava assim: 'Ai, mas se nasceu uma mulher, pra que que quer ser homem?'", recorda Ive Lucy Bergamo ao falar do marido.
Henrique
Júnior Alves, de 32 anos, cresceu em um lar católico assim como Alexya,
em Natal (RN); converteu-se evangélico aos 14 anos e abandonou a igreja
ao se mudar para São Paulo, aos 18.
"Aqui
em São Paulo eu não quis frequentar igreja nenhuma, porque as igrejas
não aceitavam muito a homossexualidade e a transexualidade em si. Eu ia a
algumas igrejas visitar, mas me sentia confrontado com aquilo. Então,
parei de ir, fiquei um bom tempo sem frequentar igreja nenhuma. Mais ou
menos uns 9 anos sem frequentar", conta.
Chegar
a uma igreja inclusiva, segundo Henrique, foi "resposta de oração". "Eu
pedia muito a Deus, que eu queria muito, eu tinha muita vontade de
buscar", afirma. E diz que sua esposa, Ive, entrou em sua vida do mesmo
jeito, através de um grupo de Whatsapp da igreja.
Um
leve desentendimento quanto a uma reflexão bíblica proposta no grupo
por Henrique foi a fagulha para aproximar os dois. Mas Ive explica que
foi necessária uma "conversão" diferente para engatar o namoro.
"Deus
foi trabalhando no meu coração, e ele foi me ensinando. Que era o jeito
dele. Como ele nasceu. Ele estava no corpo de uma mulher, mas se sente
um homem. Não é isso? Então, Deus e ele foram me ensinando a entender",
completa Ive.
O
casal ainda lembra com fascínio da noite em que foram ungidos para a
obra, que é quando um pastor faz uma oração reconhecendo o propósito de
Deus na vida de uma pessoa para que ela trabalhe disseminando o
Evangelho. Ive foi ungida para ser pastora; ele, para ser missionário. A
surpresa, contam, foi porque se tratava de "um pastor hétero, de uma
igreja tradicional".
"Ele (o pastor que nos ungiu) é da Assembleia de Deus. A gente jamais iria imaginar. (...) E estamos aqui pra fazer a obra d'Ele. Pra ganhar mais transexuais, para eles saberem que podem sim adorar a Deus, que podem sim encontrar uma esposa ou um esposo no meio evangélico", afirma Henrique.
De 'seita' à nova casa
Entre
diversas transições por que passou na vida, incluindo a do endereço (de
Belém do Pará a São Paulo) e a do gênero (do masculino para o
feminino), Jacqueline Chanel também passou de braço direito do pastor de
uma igreja evangélica pentecostal a diaconisa de uma igreja inclusiva.
Isso depois de viver vários anos enxergando esse tipo de igreja como
"seita".
Cabeleireira
de profissão, ela conta que percorreu um longo caminho até completar
sua transição. Depois de muito bullying por começar a se ver como
menina, aos 13 anos foi entregue pela mãe a um pastor da Igreja do
Evangelho Quadrangular, para focar a vida entre estudos e trabalho na
igreja e ver se isso possibilitaria uma "cura". Não funcionou.
"O pastor tinha muito carinho por mim, muito respeito por mim, mas eu era uma pessoa que ele trazia 'escondida'. Até chegar uma situação muito constrangedora, em que chamaram o coral pra participar, mas eu como líder do coral não fui chamada a participar. E aquilo me magoou tanto que foi o motivo da minha saída, aos 20 anos, da igreja."
Assim
como Henrique, foi só depois de se mudar para São Paulo que Jacqueline
conseguiu ver cenário mais adequado para sua transição. Mas mesmo na
cidade nova, ela insistiu em procurar outras denominações evangélicas,
recusando-se a abandonar sua fé. A história se repetiu, o que acabou
"empurrando-a" aos últimos bancos para tentar passar despercebida pelos
irmãos.
Após
o convite de um pastor para visitar uma igreja que pregava o evangelho
inclusivo, ela decidiu ver com os próprios olhos o que ocorria dentro da
suposta "seita".
Cinco
anos depois, ela é diaconisa da Comunidade Cristã Nova Esperança da
Vila Mariana e presidente da ONG Séforas, que trabalha temáticas cristãs
com travestis, transexuais e moradores de rua da região da República,
na Zona Central de São Paulo.
"O nosso trabalho é de acolhimento, para que elas possam conhecer a palavra. Para que elas tenham conhecimento de que esse Evangelho Inclusivo as aceita. De que elas podem começar uma vida cristã. Para depois se trabalhar essa questão de sair da prostituição ou não sair. Assim como as drogas, que caminham junto com a prostituição. O mais importante disso tudo é que elas tenham conhecimento de Deus, é que elas sintam esse amor de Deus, e que isso possa fazer uma diferença na vida delas."
Aceitação e inclusão
Entre
padres e pastores, é comum o discurso que defende a aceitação
indiscriminada de fiéis LGBT e faz crítica ao uso do termo "inclusivo"
para identificar essas novas igrejas, por entenderem que o Evangelho,
por definição, foi enviado para todos e já é inclusivo.
"Nós
não estamos excluindo, mas nós não podemos equiparar a exceção com a
regra. O que se quer é um discurso onde tudo seja natural. Eu acho que
isso é nivelar por baixo. Sou contra toda e qualquer discriminação,
bullying, toda e qualquer forma de violência, de qualquer forma. Mas nós
não podemos querer fazer uma equiparação, simplesmente querer descartar
o que Deus pensou para o ser humano", diz o padre e cantor Reginaldo
Manzotti, do Santuário Nossa Senhora de Guadalupe.
Uma
fala comumente repetida em igrejas conservadoras a respeito do
acolhimento de transgêneros (e de pessoas do espectro LGBT em geral)
busca dissociar o sujeito de sua maneira de ser, no sentido de "não
odiar o pecador, mas odiar o pecado". Mas nem todos abraçam esse ponto
de vista.
"É
um clichê religioso para dizer: 'Olha, nós somos bonzinhos, sim,
aceitamos você, só não gostamos da maneira como você vive'. 'Bom, então
se você não gosta da maneira como eu vivo, você não gosta de mim, você
não vai me aceitar aí dentro do seu ambiente ou junto de você'. E, na
verdade, é isso que acontece", afirma o reverendo Ed René, da Igreja
Batista da Água Branca.
"Todo discurso que sataniza um tipo de pessoa e um tipo de comportamento vai gerar violência, sim. A igreja deveria estar mais preocupada em promover paz, conciliação, respeito, preservação de direitos humanos... Mais do que ficar discutindo moral sexual. Isso é importante, mas existe uma agenda muito mais importante, na minha opinião", considera René.
O G1
questionou entrevistados a respeito de passagens bíblicas que podem ser
destacadas quando o assunto é opção sexual e mudança de gênero.
Inclusiva até que ponto?
Mesmo
entre igrejas que se identificam como inclusivas, no entanto, pode não
haver consenso quanto à aceitação dos transgêneros, segundo relatos
ouvidos pelo G1.
"Eu
sei de igrejas que excluem, realmente. Tipo assim, eles aceitam os gays
e as lésbicas, mas não aceitam as travestis e nem as transexuais. Há
uma incoerência, uma divisão interna. Esse evangelho que as pessoas
tentam vender, ele não é real, porque ele não inclui todas as pessoas",
afirma Jacqueline Chanel.
Já
Alexya Salvador recorda duras críticas que sofreu vindas de outros
cristãos LGBT após dar uma entrevista dizendo que "Jesus foi o primeiro
transgênero". Ela justifica a afirmação sugerindo que Cristo
transicionou do gênero divino ao gênero humano ao surgir como o Messias.
"Eu sei que eu sou a contradição cristã no Brasil. E as pessoas preferem me atacar, os próprios LGBTs inclusivos preferem me atacar, dizendo que eu estou fazendo blasfêmia com a palavra de Deus. Não é blasfêmia. Se reconhecer em Deus é lindo. (...) E eu sou a imagem e semelhança de Deus, e não preciso pedir permissão de ninguém para isso, para ser. Eu sou e pronto", diz ela.
Jesus, travesti
Uma
peça de teatro teve destaque ao longo de 2017 por motivar protestos e
tentativas de barrar sua apresentação em diferentes cidades do Brasil.
Trata-se da adaptação "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", da
diretora Natália Mallo. O monólogo retrata a segunda vinda de Jesus
Cristo como uma travesti.
"Na
verdade, foi por isso que a autora (Jo Clifford) fez a peça. Porque ela
não pôde mais entrar na igreja que ela frequentava, quando ela fez a
transição de gênero. Ela escreveu esse texto, onde ela diz: 'Onde está
escrito que eu, uma mulher trans, não posso frequentar a igreja? Não
tenho direito à minha fé?'", conta Natália, que assistiu ao espetáculo
original em Edimburgo, na Escócia, e conheceu a autora.
A resposta à indagação sai da boca da atriz trans Renata Carvalho, que encarna Jesus na adaptação: "Eu nunca disse isso".
"A intolerância religiosa está muito forte, né. Muito forte mesmo. Em tempos onde Trump é eleito, onde essa extrema direita vem tão forte. Até o desfile da supremacia branca, isso é assustador. E isso no fundo, no fundo... a religião foi o alicerce para tudo isso", diz Renata.
Natália
lista os obstáculos que já surgiram contra a apresentação, entre
ataques, ameaças de censura, ameaças físicas, difamação, notas de
repúdio e exigências de cancelamento com os festivais ou com as
organizações contratantes.
"A
gente sempre conseguiu manter, dar o recado. E aí o público, o público
fala por si. A gente não precisa defender o espetáculo, é o público que
defende. E isso é muito bonito", diz a diretora.
Religião x sociedade
Pelo
lado da psicologia, especialistas reconhecem o embate entre religião e
mudança de gênero. "As religiões têm seus dogmas relativamente fixos e
que têm uma taxa de mudança muito lenta, muito mais paulatina que as
mudanças sociais", avalia o psicólogo Pedro Ambra, pesquisador da área
de gênero, doutor pela USP e pela Sorbonne Paris Cité.
"Cada nova forma de viver o gênero carrega sofrimento e não encontra abertura em boa parte das religiões. (...) A religião pode, como outras incidências da sociedade, retardar ou até impedir uma transição no sentido tradicional ou consciente", diz Ambra.
Também
nas igrejas inclusivas, a visão crítica da história do Cristianismo
ressalta os longos processos até que a religião se adequasse à evolução
social em diferentes aspectos.
"As
mulheres já sofreram muito com isso (dogmas e pensamento conservador).
Já tivemos momentos da história do Cristianismo em que os cristãos
tinham como consenso que os negros eram uma raça inferior e que a
escravidão era uma instituição estabelecida por Deus. Alguém precisou
questionar isso", afirma o reverendo Cristiano Valério, da Igreja da
Comunidade Metropolitana (ICM) de São Paulo.
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